Um Natal sem rótulos: crescer em casas de acolhimento em Portugal
O Natal continua a ser apresentado como sinónimo de família, mesa cheia e pertença. Mas para milhares de crianças e jovens em Portugal esta época do ano é vivida longe da casa onde nasceram. Crescem em instituições de acolhimento - hoje intituladas “casas” - que procuram garantir aquilo que falhou noutro momento da vida: segurança, estabilidade e vínculo. Entre Braga e Elvas, duas realidades distintas convergem num mesmo objetivo: fazer do Natal apenas mais um momento da infância, e não um espelho da diferença.
Por detrás das luzes, das músicas repetidas e da insistência coletiva na felicidade, o Natal pode funcionar como um amplificador emocional. Para crianças e jovens em casas de acolhimento, esta época tanto pode criar memórias de pertença como reativar ausências, perdas e comparações difíceis de gerir. Psicólogos alertam para sentimentos de ambivalência, ansiedade e solidão, muitas vezes invisíveis, enquanto as instituições tentam equilibrar celebração e normalidade, sem transformar a dor num espetáculo. É nesse cruzamento entre emoção, cuidado e política de acolhimento que esta reportagem se constrói.
Do orfanato à casa: a lenta desconstrução do estigma
No Centro Social Padre David, em Braga, a resistência a falar do Natal nasce precisamente dessa vontade de normalização. “Ao destacarmos demasiado o Natal, estamos outra vez a sublinhar uma diferença que não queremos que exista”, começa por afirmar ao Conta Lá, Filipa Amorim, técnica da instituição. “Aquilo que pretendemos é que a vida destas crianças seja normalizada ao longo de todo o ano.”
Fundada em 1958, a instituição nasceu para apoiar famílias pobres e acabou por acolher crianças órfãs num contexto histórico marcado pela carência e pela estigmatização. “Durante muitos anos, estas casas foram vistas como orfanatos. Havia curiosidade, pena, caridade, sobretudo no Natal”, recorda. Hoje, o modelo é outro: menos crianças, mais personalização, mais privacidade.
Cada criança tem a sua roupa, os seus objetos, o seu espaço. Os carros não estão identificados, as visitas são controladas, as histórias de vida protegidas. “São detalhes que fazem toda a diferença. Se uma criança vai à escola, não tem de ir num carro com o nome da instituição. Na dúvida, protegemos sempre a criança.”
Também em Elvas, na Casa de Acolhimento Residencial D’Os Cucos, da Comissão de Melhoramentos do Concelho de Elvas (CMCE), o discurso é semelhante. A missão passa por “contribuir para o desenvolvimento integral e harmonioso das crianças e jovens, proporcionando um ambiente de afeto, seguro e acolhedor, o mais próximo possível de um núcleo familiar”. A casa acolhe crianças dos 0 aos 18 anos, podendo o acompanhamento prolongar-se até aos 21 ou 25, se o percurso educativo o justificar.
Quando o Natal amplifica ausências
Apesar da tentativa de normalização, o Natal continua a ter um peso emocional próprio. Filipa Amorim reconhece que para alguns jovens, sobretudo aqueles com percursos de acolhimento mais longos, esta pode ser uma altura difícil. “Há jovens que se lembram do que poderiam estar a viver ou de pessoas que já perderam. Em termos emocionais, esta época pode ser particularmente dolorosa.”
Essa leitura é aprofundada pela psicóloga Catarina Lucas, que acompanha crianças em contextos de fragilidade familiar. “O Natal intensifica tanto memórias como ausências”, explica ao Conta Lá. “Estas crianças vivem um conflito interno: desejam pertença e proteção, mas são confrontadas com aquilo que não tiveram ou perderam.” A pressão social para que esta seja “uma época feliz” pode gerar culpa, frustração e ansiedade.
Segundo a psicóloga, o impacto varia consoante a idade. Crianças pequenas reagem de forma mais imediata; pré-adolescentes começam a comparar-se com os outros; adolescentes vivem a época de forma mais reflexiva, com sentimentos de solidão e idealização de famílias “perfeitas”. “À medida que crescem, a perceção da diferença torna-se mais consciente e emocionalmente carregada.”
Estratégias de proteção e criação de vínculo
Para lidar com esta intensidade emocional, as crianças desenvolvem mecanismos de proteção. Algumas isolam-se, outras procuram maior proximidade com adultos de referência; há quem use a fantasia, quem vista uma máscara de alegria. “São estratégias para lidar com a sensação de exclusão”, explica Catarina Lucas. “Mas isso não significa que o Natal seja apenas negativo.”
Tanto em Braga como em Elvas, o foco está na criação de vínculo. Na CAR D’Os Cucos, a vinculação é assumida como base do trabalho diário. A casa promove laços afetivos profundos com educadores e técnicos de referência, oferecendo “casa e colo”, num ambiente estruturado, previsível e promotor de autonomia. As crianças frequentam escolas, clubes desportivos, escuteiros, atividades culturais - participam na vida da comunidade como quaisquer outras.
Celebrar sem espetáculo
As celebrações natalícias existem, mas sem encenação para fora. No Centro Social Padre David, há uma festa comum antes do Natal, que junta crianças, jovens, idosos e funcionários: missa, almoço, música, pequenos teatros preparados pelas próprias crianças, troca de presentes. A maioria passa o Natal com a família biológica ou figuras de referência; a instituição garante presentes e, quando necessário, apoio alimentar. Quem fica, passa a consoada com os funcionários.
Em Elvas, o Natal é vivido intensamente dentro da casa. As crianças decoram a instituição, escrevem cartas ao Pai Natal, participam em atividades culturais, visitas à Cidade Natal, festas escolares e iniciativas da comunidade. No dia 24, há jantar de Natal em casa e consoada, com o apoio de parceiros e da comunidade local. As crianças que permanecem na instituição juntam-se ainda aos Bombeiros Voluntários de Elvas, num momento simbólico de partilha.
Normalizar não é ignorar
A normalização, sublinham ambas as instituições, não significa apagar a dor nem fingir que o Natal é igual para todos. Significa não transformar essa diferença num espetáculo público. “As nossas crianças não são da comunidade, são desta casa”, afirma Filipa Amorim. “A casa não é um espaço aberto. É o seu lar.”
A psicóloga Catarina Lucas reforça ainda que o que mais ajuda estas crianças “é a presença consistente de adultos de referência, rotinas previsíveis e validação emocional. Pequenos gestos de inclusão criam memórias positivas que podem ser levadas para o futuro.”
E depois do Natal?
Quando a época termina, pode surgir um “pós-Natal emocional”: tristeza, cansaço, irritabilidade. Mas também podem ficar memórias de segurança e pertença. “Se houve experiências positivas, estas tornam-se recursos emocionais importantes”, explica a psicóloga.
Porém, nas instituições, o olhar está sobretudo no futuro. No Centro Social Padre David, a aposta na educação é central. “Fazer com que estas crianças percebam que o estudo como elevador social tem sido uma missão”, diz Filipa Amorim. Hoje, vários jovens frequentam o ensino superior. Em Elvas, a CAR D’Os Cucos celebra 30 anos de existência com inúmeros casos de sucesso, incluindo jovens que prosseguiram estudos após a maioridade.
Um apelo à empatia
Filipa Amorim gosta do Natal, mas recusa o sentimentalismo fácil. “Se for nesta altura que as pessoas se lembram de olhar para o lado, já não é mau. O que eu espero é que a empatia não desapareça.”
Em Elvas, a mensagem é semelhante: um agradecimento às equipas e à comunidade, mas também um apelo claro à não estigmatização. “São casas que acolhem, protegem, mimam e cuidam”, lembra a instituição, sublinhando que o acolhimento resulta de decisões judiciais tomadas no superior interesse da criança”.
Talvez seja esse o verdadeiro desafio do Natal nas casas de acolhimento: não pedir um Natal especial, mas garantir uma infância normal, com afeto, proteção e futuro. Sem rótulos.